segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Grandes mistérios habitam…


Grandes mistérios habitam…

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.
Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz. 

Fernando Pessoa

Abismo


Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
                Sinto de repente pouco,
                Vácuo, o momento, o lugar.
                Tudo de repente é oco —
                Mesmo o meu estar a pensar.
                Tudo — eu e o mundo em redor —
                Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar.
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus.
                E súbito encontro Deus. 

Fernando Pessoa

Súbita…


Súbita…

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão noturna que me guia.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria. 

Fernando Pessoa

Iniciação


Iniciação

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais:
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ’stãs morto, entre ciprestes.
Neófito, não há morte.

Fernando Pessoa

Primeiro Prenúncio


Primeiro Prenúncio

Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço,
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois.
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo.
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

Alberto Caeiro